Hugo Tanno 

A icterícia pode ser considerada uma síndrome que é classicamente definida como o conjunto de sintomas e sinais que acompanham a pigmentação amarelada da pele e da mucosa e que se encontra um aumento sérico da bilirrubina. Porém, o melhor conhecimento da fisiopatologia tem levado à ampliação desse conceito, uma vez que os motivos que levam à produção de icterícia podem ocorrer sem a presença dessa coloração na pele e na mucosa. Em outras palavras, icterícia é a expressão clínica de um fenômeno biológico produzido por diferentes causas, que pode estar presente sem que o paciente necessariamente tenha icterícia.

Fisiopatologia

Se for levado em consideração que a icterícia é o resultado do aumento dos pigmentos biliares no sangue, que então se espalham para os tecidos orgânicos, é importante revisar o metabolismo normal da bilirrubina em suas diferentes etapas: produção, transporte humoral , captação hepática, conjugação e transporte e excreção para o polo biliar.

A principal origem da bilirrubina é a degradação dos glóbulos vermelhos, que após 120 dias (vida média) destroem e liberam hemoglobina. Este é dividido em globina e heme, que, quando sua molécula se abre e o ferro é liberado, se transforma em protoporfirina que após etapas sucessivas, se transforma em bilirrubina.

A bilirrubina é transportada no sangue pela albumina, pois em sua forma não conjugada é o pH fisiológico, praticamente insolúvel no plasma. Assim transportada, a bilirrubina é oferecida aos diferentes parênquimas. A entrada na célula hepática é feita por transporte passivo de difusão facilitada. Sua difusão no hepatócito é realizada com a intervenção de dois aceptores de proteína, Y (ligandina) e Z. Posteriormente, a bilirrubina é conjugada com duas moléculas de ácido glucurônico na presença da enzima glucuronil transferase. Assim, transformada em um pigmento mais solúvel, a bilirrubina é excretada através do sistema reticulo endoplasmático para a membrana canalicular. Recentemente, foi atribuída importância ao papel da microfilamenia pericanalicular na excreção biliar. Esse processo de excreção é realizado por um mecanismo de transporte ativo contra o gradiente, parcialmente independente e parcialmente ligado aos sais biliares. A bilirrubina assim excretada torna-se um componente da bile, dando à bile canalicular uma cor amarelo-limão; posteriormente concentra-se na vesícula biliar, local onde, por reabsorção de água, atinge sua maior concentração. Pela contração da vesícula biliar (estímulos colecistocinéticos), é excretado no duodeno. No lúmen intestinal é reduzida pela ação das bactérias intestinais e a seguir parcialmente reabsorvida pelo circuito entero-hepático (urobilina), por meio do qual é oferecida novamente ao fígado para sua metabolização; o restante é eliminado com matéria fecal (estercobilina) independente e parcialmente ligado aos sais biliares.  

  1. Classificação fisiopatológica da icterícia

É evidente, então, que a icterícia é um sinal clínico causado por alguma alteração no processo normal de formação, captação, conjugação ou excreção da bilirrubina, o que nos obriga a diferenciar aquelas icterícias com predomínio de bilirrubina não conjugada (icterícia pré-hepática) daqueles em que a hiperbilirrubinemia é predominantemente do tipo conjugado (icterícia pós-hepática). Por sua vez, icterícia hepática é aquela em que ambas as bilirrubinas estão elevadas. Nesses casos, a causa geralmente está relacionada ao dano hepatocelular.

  1. Icterícia com predomínio de bilirrubina não conjugada ou indireta. Nestes quadros, a causa da icterícia pode reconhecer diferentes origens:
  1. a) Aumento da produção de bilirrubina. É a icterícia típica da hemólise em qualquer uma de suas etiologias. A icterícia devido à eritroblastose fetal adquire significado especial, uma vez que nesses casos, hemólise maciça, hipoalbuminemia do recém-nascido (déficit de transporte) e a incapacidade do fígado de conjugar a bilirrubina (deficiência de glucuronil transferase) fazem com que a bilirrubina não conjugada aumente em números muito elevados (> 20 mg%), que pode causar lesão cerebral (kemicterus). Os sintomas são aqueles que correspondem ao tipo de anemia hemolítica que o produz.

Na icterícia hemolítica, a semiologia palpatória do fígado é normal, exceto que há hemossiderose hepática devido à hemólise excessiva. Nestes casos, o fígado é palpado, aumentado de tamanho e consistência. Em geral, o baço está aumentado e é uma constante semiológica desse tipo de anemia. Estudos laboratoriais mostram que a função hepática está normal.

  1. b) Déficit de transporte. Essa circunstância é mais observada no recém-nascido, onde o déficit de transporte é mais perceptível pela baixa albumina sérica nessa fase da vida. Certos antibióticos (novobiocina, sulfas) podem interferir no transporte da bilirrubina pela albumina. Nestes casos, a semiologia abdominal, assim como o laboratório hepático, encontra-se dentro dos limites da normalidade.
  1. c) Alterações na captação de bilirrubina pelo hepatócito. Embora essa entidade fosse conhecida anos atrás como síndrome de Gilbert, hoje sabe-se que nessa síndrome pode haver tanto uma captação quanto um déficit de conjugação, frequentemente encontrando-se uma deficiência de glicuroniltransferase. A síndrome de Gilbert é mais frequente em homens do que em mulheres (proporção de 4:1) e começa a se manifestar na puberdade.

Ela está sob pressão de icterícia conjuntival que geralmente aumenta com o jejum. A urina é clara e as fezes são de cor normal. O laboratório mostra hiperbilirrubinemia não conjugada, sem anemia ou testes de função hepática anormais. É comum que o estudo familiar detecte outros casos de hiperbilirrubinemia não conjugada de hierarquia diferente. O prognóstico é bom e o quadro não requer terapia.

  1. d) Alteração na conjugação da bilirrubina (síndrome de Crigler-Najjar). Nestes casos, há deficiência total de glicuroniltransferase (tipo I) ou parcial (tipo II). No tipo I o prognóstico é ruim e o paciente geralmente morre nos primeiros anos de vida. O tipo II tem bom prognóstico e, exceto pela coloração ictérica das conjuntivas, o paciente está absolutamente normal.

O diagnóstico diferencial entre a síndrome de Gilbert e a síndrome de Crigler-Najjar tipo II é difícil, pois o laboratório convencional de função hepática é normal em ambas.

  1. Icterícia com elevação de ambas as bilirrubinas. Nesse tipo de icterícia, geralmente há envolvimento hepatocelular. É difícil listar as diferentes patologias que podem produzi-los. Com a didática, no entanto, é possível dividi-los em icterícia por doença hepática aguda e icterícia por doença hepática crônica.
  1. a) Icterícia por doença hepática aguda. Este tópico será coberto brevemente. A etiologia mais frequente é a viral, e na atividade se reconhece uma série de agentes virais capazes de produzir a doença: vírus da hepatite (A, B, vírus não A-não B), citomegalovírus, vírus Epstein Barr, rubéola congênita, amarelo febre, herpes simplex tipo I e vírus coxsackie, para citar os mais conhecidos. No entanto, os três tipos de vírus da hepatite estão entre os mais importantes por sua frequência e capacidade de gerar icterícia.

A segunda etiologia em termos de frequência de icterícia aguda é causada por agentes tóxicos. As substâncias tóxicas podem danificar o fígado diretamente (ação previsível) ou indiretamente (ação não previsível). No primeiro grupo, o dano está relacionado à quantidade do tóxico recebido, enquanto no segundo não há relação dose-efeito. A hepatite alcoólica é um tipo muito específico de lesão hepática tóxica e, por sua vez, uma das formas mais comuns de doença hepática. Pode se apresentar com ou sem icterícia, sendo as formas ictéricas correspondentes às de hierarquia clínica superior.

  1. b) Icterícia por doença hepática crônica. Entre as doenças hepáticas crônicas mais frequentes que causam icterícia estão as hepatites crônicas, e entre elas a chamada ativa (hepatite crônica ativa), a cirrose hepática, em qualquer de suas etiologias, pode se decompor e causar icterícia. A icterícia nesses pacientes geralmente está associada a uma forma ativa com prognóstico reservado.

Na doença hepática crônica, a icterícia é a expressão final da claudicação parenquimatosa. Portanto, o aparecimento de icterícia pode ser o denominador comum de uma série de fatores que levam à descompensação na doença hepática crônica.

  1. Icterícia com elevação da bilirrubina direta ou conjugada. Nas icterícias desse tipo, a causa geralmente é obstrutiva. A obstrução mecânica ao fluxo biliar dá origem a um quadro ictérico com certas características clínicas, laboratoriais e histológicas, denominado colestase.

Devido à localização do processo obstrutivo, a colestase é dividida em intra-hepática e extra-hepática. A diferenciação entre essas duas formas torna o comportamento terapêutico, visto que a colestase intra-hepática é para tratamento médico, enquanto a colestase extra-hepática é para resolução cirúrgica. Talvez este capítulo seja o mais complexo na metodologia diagnóstica exigida, uma vez que as diferenças clínicas entre os dois nem sempre são claras, com manifestações clínicas e laboratoriais sobrepostas nos dois tipos de colestase. Posteriormente, nos referiremos à metodologia a seguir no diagnóstico diferencial da icterícia.

  1. Classificação clínica da icterícia

Uma vez feito este tipo de introdução, o tipo de icterícia deve ser classificado na prática, para posteriormente averiguar a sua causa.

  1. Icterícia pré-hepática. Eles geralmente têm um fígado saudável. A sintomatologia é dada pela existência de uma anemia, com as manifestações clínicas que a acompanham (astenia, fraqueza, tonturas, etc.). A urina é límpida e as fezes normais ou hipercoloridas. Esse diagnóstico presuntivo é corroborado por estudo hematológico que atesta o tipo de anemia. Hiperbilirrubinemia do tipo não conjugado ocorre com transaminases normais.
  1. Icterícia de causa hepatocelular. a) Doença hepática aguda. As formas ictéricas de etiologia viral são geralmente mais sintomáticas do que as formas não ictéricas. O paciente apresenta astenia, anorexia, febre baixa, náuseas e desconforto abdominal. O grau de icterícia é revelado pela observação da pele e da mucosa à luz do dia. O fígado está dilatado e o paciente sente dor quando "fisgado" nas manobras palpatórias. A superfície é lisa e sua consistência discretamente aumentada. O baço está aumentado em 30% dos casos, sendo sensível à palpação e com consistência um pouco aumentada. A presença de coluria na urina.

Envolvimento sensorial, sonolência, turvação e mudanças de comportamento são elementos que acompanham o paciente ictérico com insuficiência hepática grave. Nestes casos há a chamada respiração hepática e distúrbios neurológicos que revelam envolvimento da via extrapiramidal (tremor, asterixia, sinal da roda dentada, etc.). Esse conjunto de manifestações caracteriza a chamada encefalopatia portos sistêmica. O fígado é palpável com dificuldade e muitas vezes não é palpável devido ao seu tamanho reduzido, o que é considerado um sinal de evidente mau prognóstico.

Laboratório em doenças hepáticas agudas nestes casos com elevação de ambos os tipos de bilirrubina. Às vezes, o franco predomínio da forma conjugada faz com que ela simule um quadro obstrutivo (hepatite colestática).

As transaminases aumentadas mais de 10 a 20 vezes acima dos valores normais constituem o principal elemento do valor diagnóstico. A sedimentação eritrocitária é normal e o hemograma é ligeiramente linfócito. A análise da urina detecta a presença de bilirrubina conjugada (ou direta).

Nas formas comuns a reserva hepática é conservada, enquanto nas formas graves, ao contrário, ocorre diminuição da taxa de protrombina e queda da colinesterase sérica. A taxa de albumina só diminui se a insuficiência hepática continuar.

A eletroforese de proteínas não mostra nenhuma mudança significativa; as disproteinemias na hepatite aguda estão relacionadas a uma mudança na qualidade e não na quantidade das proteínas. Isso fez com que os testes de floculação (Hanger, timol, Kunkel) fossem usados ​​décadas atrás como elementos de valor diagnóstico na hepatite aguda. Sua inespecificidade e a substituição por estudos enzimáticos para avaliação de necrose levaram à sua suspensão. A fosfatase alcalina, como o colesterol, está elevada nas formas colestáticas.

A determinação de anticorpos IgM para hepatite A aguda e do antígeno de superfície para vírus B (HBsAg) hoje possibilita o diagnóstico de hepatites A e B e, por exclusão, do tipo não A-não B. Considerando o bom prognóstico da primeira e da evolução mais incerta nas outras duas (B e não A-não B), é necessário complementar o diagnóstico etiológico para melhor determinar o futuro do paciente com hepatite.

  1. b) Doença hepática crônica. Os diferentes tipos de hepatites crônicas com ou sem cirrose estão aqui incluídos globalmente, pois em outro capítulo serão aprofundados.

A icterícia no paciente com doença hepática crônica geralmente é um índice de descompensação, uma vez que a icterícia se manifesta esporadicamente no curso da doença hepática crônica. A magnitude disso está intimamente relacionada à gravidade do processo.

Os sintomas frequentemente se sobrepõem aos da hepatite aguda (astenia, anorexia, náuseas, perda de peso). Semi- logicamente, é detectada a presença de estigmas cutâneos de doença hepática crônica (fígado palmar, nevos estelares etc.) nesse tipo de paciente. O fígado está aumentado e é francamente palpável por sua maior consistência. A irregularidade na superfície marca a evolução para a cirrose. A esplenomegalia costuma estar presente. A existência de circulação colateral e ascite acompanha os casos de hipertensão portal.

No laboratório, a hiperbilirrubinemia é verificada com valores variáveis ​​para ambas as bilirrubinas. As transaminases estão elevadas, mas em menor grau do que na hepatite aguda. A diminuição da reserva parenquimatosa (teste da bromossulftaleína) demonstra o comprometimento da forma crônica. A disproteinemia (hipoalbuminemia e hipergamaglobulinemia) se destaca como uma patente de doença hepática crônica.

A anamnese revela a etiologia alcoólica ou viral da doença. No entanto, pacientes ictéricos com doença hepática crônica típica são frequentemente encontrados sem uma história clara para atribuir uma causa definida.

O recurso da laparoscopia com biópsia hepática é um bom complemento para estudar esses pacientes,

  1. Icterícia de causa obstrutiva. Como mencionado anteriormente, isso pode corresponder a uma causa extra-hepática (icterícia cirúrgica) ou a uma obstrução intra-hepática (icterícia médica).

O conjunto de sintomas que caracterizam a obstrução biliar extra-hepática é conhecido como síndrome de Coledociana. Isso pode ser completo ou incompleto dependendo da ausência total ou parcial, respectivamente, de passagem da bile para o intestino. As etiologias mais frequentes respondem a uma causa litiásica ou neoplásica, enquanto as parasitárias são menos comuns.

A icterícia de origem litiásica geralmente se apresenta com dor, que é intensa e epigástrica. O início é repentino, horas após os excessos alimentares, e muitas vezes durante a noite, fazendo com que o paciente acorde com as dores intensas, que costumam durar entre 15 minutos e 2 horas. A dor irradia para o hipocôndrio direito ou para as costas (envolvimento pancreático). Pode ser acompanhada de náuseas e vômitos. A colúria, após o episódio de dor, é a primeira manifestação do quadro obstrutivo. As fezes são cor de massa (acólia), dependendo do grau de obstrução. A icterícia depende do grau de obstrução e infecção concomitante (colangite). Prurido segue-se à icterícia como evidência clínica de colestase.

A semiologia do abdômen mostra dor à palpação do fígado. A existência de vesícula palpável e dolorosa com defesa abdominal é a expressão de colecistite aguda. Este último é acompanhado, em 25% dos casos, de icterícia que se resolve nos dias seguintes. A coloração das fezes e a evolução da colúria são bons parâmetros clínicos para o acompanhamento.

O laboratório demonstra um aumento de glóbulos brancos relacionado ao componente infeccioso. A sedimentação eritrocitária aumenta nos dias seguintes. O aumento precoce das transaminases, seguido por uma diminuição acentuada, às vezes é o expoente laboratorial mais antigo, que adquire um perfil verdadeiramente definido quando acompanhado por um aumento na fosfatase alcalina, a 5-nucleotidase e a gama-glutamiltranspetidase. Esta última enzima é a que aumenta de forma mais dramática.

O diagnóstico presuntivo pode ser confirmado pela realização de ultrassonografia abdominal, que mostra a dilatação do ducto biliar (intra e / ou extra-hepático), bem como a presença de imagens eco-refrigerantes compatíveis com litíase biliar.

A visualização da árvore biliar é obtida por colangiopancreatografia endoscópica retrógrada ou por colangiografia transparento-hepática com agulha fina (tipo Chiba).

A icterícia neoplásica obstrutiva tem um curso clínico menos sintomático e uma apresentação frequentemente "fria", na qual apenas colúria, hipocolia e icterícia com coceira são as manifestações iniciais da doença. Quando a obstrução coledoquiana está abaixo do cisto, a palpação revela uma vesícula biliar grande e indolor, constituindo o sinal de Courvoisier-Terrier.

História de perda de peso, anorexia e piora do estado geral podem estar presentes como expressão de uma síndrome neoplásica. O diabetes, ou a existência de sintomas de má absorção, podem ser elementos clínicos sugestivos de neoplasia do pâncreas.

O laboratório não define o diagnóstico; mais útil é um ultrassom abdominal ou, eventualmente, uma tomografia axial computadorizada. A colangiografia retrógrada é útil no estudo do ducto biliar para determinar o local da obstrução e é o método de escolha para detectar a neoplasia papilar. A colangiografia transparento-hepática é outro método rotineiramente utilizado em muitos centros, e sua principal aplicação é no estudo de obstruções altas para conhecer o grau de obstrução.

O diagnóstico diferencial (intra-hepático vs. extra-hepático) na icterícia colestática é um desafio para o exercício do bom senso do clínico, pois requer o uso medido de exames complementares e a reconsideração dos benefícios de um bom exame semiológico, às vezes esquecido.

O bom uso da clínica e a utilização de um laboratório convencional permitem estabelecer o diagnóstico em 80% das icterícias. Os restantes 20% requerem outros exames complementares cujo algoritmo de estudo é proposto na fig. 15-1.